Vilões de HQ e a distopia nossa de cada dia


Por Eduardo Rodrigues de Souza

Agentes do Governo adentram um grande evento literário em busca de HQ´s com conteúdo considerado Impróprio. O representante do governo, que é pastor de uma igreja, manda recolher exemplares da HQ Vingadores – A Cruzada das Crianças. Identificado o motivo da caça aos livretos por atores do sistema judiciário: cenas de beijo entre dois personagens masculinos.

Eis que o Sistema de justiça, em uma burocracia não menos distópica, mantém a apreensão dos livretos – até que a corte Superior, alegando a manutenção de um ambiente livre de ideias, (como base do combalido sistema democrático) derruba qualquer ordem de apreensão. Afinal há que se perguntar; se um beijo, entre homem e mulher, não pode ser por si só considerado erotizado, considerar o beijos de dois homens como conteúdo erotizado é ou não homofobia?

Tal cenário distópico, poderia ser claramente o roteiro de uma HQ (história em quadrinhos), mas é a descrição da ordem de recolhimento de obras em quadrinhos pelo governador do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na Bienal do Livro 2019.

Talvez vejamos semelhanças com V de Vingança de Alan Moore e David Lloyd publicada pela DC Comics através da Vertigo e adaptado para o cinema em 2005. Em V de Vingança, trama situada em uma Londres de um futuro próximo e distópico opositores políticos, homossexuais e outros “indesejáveis” ​​são presos e enviados para campos de concentração. Não é difícil encontrar interpretações nas quais a personagem principal dessa HQ, pelas situações em que foi posta, poderiam sugerir ser ela uma mulher trans.

Em tempos que ex-ministro da Educação já quis reescrever a história em identidade com a mesma narrativa da obra 1984 de George Orwell, parece-nos que realmente seguimos um roteiro para o fim da civilização e a caminho da barbárie.

Não foi difícil encontrar na internet leituras com a referência ao Código dos Quadrinhos, uma série de regras de autocensura estabelecidas pelas editoras na década de 1950 nos EUA com base no clamor do congresso tendo em vista o estudo do psiquiatra moralista Fredrik Wertham, que alertava para os perigos de temas abordados nas revistas. O controvertido e não unânime resultado na época foi a proibição de monstros sobrenaturais, violência e homossexualidade nas histórias. Com o tempo a Marvel deixou de adotar o código, tendo a DC abandonado e criado uma classificação própria em 2011.

Bom lembrar que a luta das minorias contra o preconceito e por um lugar de paz e felicidade na existência é lugar comum nas HQ´s. Afinal, do que se trata X-Men se não uma metáfora para a forma como minorias são tratadas por uma sociedade contaminada por preconceito e medo do desconhecido?

Cabe ainda lembrar que ícones das HQ´s já se apresentaram abertamente LGBTQIA, como a Batwoman da DC de 2006 que havia sido expulsa do exército estadounidense por ser lésbica; uma nova geração de Homem de Gelo e Lanterna Verde, etc. Vale a Menção a Lord Fanny, uma mulher trans brasileira do HQ Os invisíveis, publicada pela Vertigo em 1994.

O que infelizmente não é ficção, mas uma sombria realidade, é que, nos dias de hoje, não nos faltam exemplos de vilões da vida real – que bem que poderiam ser obras de quadrinhos.

 

*Eduardo Rodrigues é advogado, professor, membro da Comissão Nacional de Direito Agrário e Agronegócios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), secretário estadual do PDT da Bahia e vice-presidente nacional da Fundação Leonel Brizola- Alberto Pasqualini