O retrato do horror

Foto: Nelson Almeida/AFP

Protesto em São Paulo, realizado em 5 de fevereiro de 2022.


Por Max Monjardim
10/02/2022

“Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Há 51 anos, Chico Buarque previa o Brasil de 2022. Naquele ano vivíamos – até então – o momento mais macabro da nossa história recente – a Ditadura Militar. Cinco décadas depois, um imigrante africano morreu na contramão atrapalhando o tráfego – ou o tráfico, para os que têm intimidade com o dia a dia carioca. Chico é um visionário.

Na mesma semana, Durval – negro – foi covardemente executado por três tiros, na porta de casa, por um militar que não se deu ao trabalho de sair do carro para cometer a barbárie. Achou que Durval fosse ladrão.  Transborda pelas ruas do Brasil o resultado de uma união de fatores confabulados pelas elites e deliberado pela maioria do povo, ainda em 2018. Em nome de Deus. Da família.

E a eleição de 2018 revelou o sentimento de quem havia conquistado seu espaço, sua picanha e sua viagem à Disney. O sentimento de que, abaixo da sua linha de visão, não existe nada. E essa mudança foi em escala. Quem subia um degrau na hierarquia social fazia questão de manter o pé em cima do degrau anterior. Não para relembrar os tempos de vacas magras, mas por se achar no direito de cuspir no chão que pisou. Uma guerra se instaurou, turbinada pela unanimidade do staff formador de opinião que circulava entre a política e o engajado sistema de notícias. No Congresso tem malandro federal, com aparto oficial, defendendo o nazismo.

Três anos depois, acabaram “com a farra da empregada indo passar férias na Disney”, da churrascada nas lajes e, acima de tudo, com a indignação de um povo acostumado a se indignar. Morto, o espírito do jovem africano não entendia como o trabalho do quiosque seguia sem problemas, por três horas, com cervejas geladas sendo servidas à mesma temperatura da carne negra que ali jazia.

O Brasil escancara o retrato do horror democrático. Ainda discutimos se crimes tipificados são liberdade de expressão. Enfim, confundimos liberdade com libertinagem. No coração da república assistimos, atônitos, crimes tipificados em série. Tudo com o aval daquele famoso equilíbrio de pesos e contrapesos dos três poderes.

Não há mais senso de sociedade civilizada. Armas estão sendo despejadas e apontadas nas ruas para os rostos de quem jamais imaginaria que estaríamos aqui. E é muito simples: quem não enxerga este cenário, delibera e age em razão do horror. Qualquer movimento de apoio em direção ao câncer instalado no cerne da democracia brasileira é um atestado de antecedentes criminais.

Naturalizamos a barbárie.