“A reforma agrária, defendida por João Goulart, é uma necessidade no Brasil”


Osvaldo Maneschy e Apio Gomes
23/07/2019

O jornalista Índio Vargas – que conheceu Jango na casa da mãe dele, dona Vicentina Marques Goulart, na Rua 24 de outubro em Porto Alegre – guarda dele a imagem de uma pessoa muito afetiva, acolhedora, generosa. Entre outras lembranças, recorda que no final de uma coletiva com cinco ou seis jornalistas, em Porto Alegre, entre eles Abdias Silva, do Correio do Povo; já no final, com os assuntos esgotados, Jango disse que precisava sair para acertar a venda de um carro que comprara e não gostara.

Abdias perguntou: “Vai vender? Pois me proponho a comprar”. Sabia que Jango não cobraria caro; venderia a preço justo. Explicou que tinha carro, mas estava velho e precisava de um mais novo. Jango respondeu: “Podemos conversar”. Dias depois encontrei Abdias e perguntei: “Compraste o carro do Jango?” Ele respondeu: “Quando ele me deu o preço, disse que pagaria 50% à vista e, em 30 dias, os outros 50%. Ele me disse: Pois não vais dar nada; vou te dar o carro de presente. E deu”.

Índio Vargas lembra também que quando entrevistou Jango no exílio, pela primeira vez, ele morava em um hotel de Montevidéu. Depois, soube que Jango comprou o hotel e abrigou nele todos os brasileiros pobres e acossados, como ele, pela ditadura. O hotel ficou cheio até ele ser obrigado a se mudar, como outros exilados, para a Argentina – por conta da ditadura também instalada no Uruguai.

Antes de o exílio, sem alarde, Jango ajudava com alimentos o sustento de muitas famílias pobres da periferia de São Borja, acrescentou.
No Ministério do Trabalho de Getúlio Vargas, Jango se dedicou intensamente às suas tarefas, porque se identificava com a política de Vargas de proteção ao trabalhador. “Afinal fomos o último país do mundo a libertar os escravos”, dizia ao defender a importância da criação da CLT e das regras para o mundo do trabalho.

Índio Vargas, na época da Legalidade, trabalhava no Diário de Notícias. E lembra que um dia ao descer do bonde na Rua da Praia, no Centro de Porto Alegre, para ir ao Palácio do Piratini, soube da renúncia do presidente Jânio Quadros. Primeiro falaram em deposição pelos militares, depois soube que era renúncia. Quando chegou em palácio, lembra bem, o Piratini estava fervendo porque Brizola não acreditava em renúncia; e não parava de ligar, ligar, para saber o que realmente acontecera. Até que conseguiu falar com o secretário de imprensa de Jânio, o jornalista Carlos Castello Branco, e se convencer de que era mesmo renúncia.

“Minha participação na Legalidade foi de jornalista: a de divulgar os fatos”, define Índio.

Mas logo em seguida veio o veto militar à posse de Jango, que estava na China – e a reação de Brizola ao veto, fatos que desencadearam a Legalidade. “Os militares quiseram atribuir à presença de Jango na China um cambalacho de arrumação: um acerto entre Brasil e China para comunizar o Brasil. Como se fosse possível o Brasil, hoje um país com mais de 200 milhões de habitantes, se tornar comunista unicamente por conta de uma conversa de beltrano com fulano. O Brasil, que não entende o que é comunismo; se compreendesse aí mesmo é que não aceitaria, reagiu contra o golpe”, frisou Índio Vargas.

Em 1964 foi diferente. Lembrou que Dom Evaristo Arns conta, em um dos seus livros, que quando era um simples capelão do Exército, fez questão de se juntar às tropas que marcharam de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, para derrubar Jango. Ele temia o enfrentamento, as mortes, o conflito. Quando chegou na divisa de Minas com o Rio de Janeiro, ele assistiu a tudo, viu os militares dos dois lados conversando, rindo, constatou que não haveria hostilidade, nenhum tiro foi disparado. Ele voltou para São Paulo.

A solução parlamentarista que garantiu a posse de Jango, em sua opinião, foi só um arranjo político, “um parlamentarismo de araque”. Se Tancredo Neves tivesse pousado em Porto Alegre quando saiu do Rio para conversar com Jango em Montevidéu, antes da posse, acredita, teria sido preso por Brizola. Segundo Índio da Costa, no Rio Grande do Sul ninguém gostou da solução parlamentarista: havia disposição de lutar e resistir ao golpe dos militares. “Se Brizola teria forças para enfrentar os reacionários que estavam há tempos trabalhando pelo golpe, sinceramente, não sei”, afirmou.

Jango no governo, lembra, montou um ministério altamente preparado – “um esquema muito bom” –, preocupado em fazer o Brasil avançar. “Lembro que nesta época, em um churrasco em São Borja, na casa do Jango, já presidente, conversando com o prefeito de Dom Pedrito: um homem muito rico, um homem bom. Resolvi ouvir um pouco da conversa e vi que Jango estava empenhado em convencer o prefeito, grande proprietário de terras como ele, a ceder parte de sua propriedade para os camponeses pobres. E o convenceu”.

A reforma agrária, defendida por Jango, é uma necessidade no Brasil – na opinião de Índio Vargas. “Vi o Banhado do Colégio antes e depois da reforma agrária [feita por Brizola, em seu governo]. Como se desenvolveu aquela região! Infelizmente, ela está trancada até hoje e vai ficar mil anos sem acontecer. O Brasil, sem a reforma agrária, não deslancha”, opinou.

No governo de Jango, Índio Vargas foi para Brasília, a pedido do amigo João Caruso, para trabalhar no núcleo que desenvolvia a questão da reforma agrária. Por isto tem certeza de que “a reforma agrária não sai porque o povo não sabe a importância dela. No dia em que souber a verdade, as coisas vão mudar totalmente” e a reforma agrária vai acontecer.

Ele ouviu Jango dizer que se ele, Presidente, não fizesse a reforma agrária, ela não sairia nunca. Por isto acredita que o medo da reforma agrária foi o principal gancho dos inimigos de Jango, para derrubá-lo do poder.
Veio o golpe de 1964. Índio Vargas participou da reunião na casa do comandante do III Exército, Ladário Telles, em Porto Alegre, puxada por Brizola, para reagir ao golpe dos militares.

– “Ouvi Brizola falando, falando, falando, naquela reunião. Não o via (tinha muita gente lá), mas ouvia sua voz. Ele quis que Jango enfrentasse os militares golpistas. Ladário Telles, por sua vez, informara que o esquema bélico de resistência estava pronto. Aí Jango perguntou se haveria derramamento de sangue. Ladário disse que, seguramente, haveria confronto e derramamento de sangue. Me emociona dizer isto. Jango então disse: Prefiro me retirar, sair; façam o que quiserem. Esta é a verdade”.

Ao definir Jango em poucas palavras, Índio Vargas disse: “Jango era bom demais para ser Presidente da República. Ele era um homem muito inteligente; profundamente bom”.

Confira a entrevista completa abaixo: