Falsificações e contrabandos


25/07/07

Relatos de arapongas do Itamaraty revelam que militantes brasileiros de esquerda no exterior abriram empresas de fachada e tinham até ligações com a máfia italiana

Os seqüestros políticos e os atentados à bomba eram consideradas ações legítimas pelas lideranças contrárias ao regime militar brasileiro. Na lógica da guerra irregular, buscavam a libertação de prisioneiros ou a comoção social para desestabilizar a ditadura. Muitos asilados brasileiros, no entanto, foram além das ações políticas, enveredando pelo caminho da ilegalidade. Informes produzidos pelo Centro de Informações do Exterior (Ciex), do Itamaraty, mostram o envolvimento de opositores em atividades como contrabando de armas, falsificação de dinheiro e passaportes, e até a abertura de empresas e associações de fachada. Atividades que integraram a rotina da resistência.

O informe nº 470/69, por exemplo, acusa Manuel Soares Leães (Maneco), então piloto de João Goulart, de usar os aviões de propriedade do ex-presidente para “contrabando de armas brasileiras, inclusive metralhadoras INA”. No Uruguai, ele “as venderia a elementos da organização terrorista Tupamaros”. Os movimentos guerrilheiros latino-americanos também estariam juntos na negociação de dólares falsos. O informe nº 036/76 dá conta da apreensão em província do norte argentino de uma gráfica de dólares falsos. A maquinaria, segundo o documento, “teria sido usada no Chile durante o governo de Salvador Allende, tendo sido posteriormente transferida para a Argentina”.

No informe nº 283, de 5 de junho de 1972, um agente infiltrado diz que Joaquim Pires Cerveira confidenciou a ele que viajaria em breve para a Itália com o objetivo de buscar fundos a serem doados pelo Partido Comunista Italiano. “Cerveira teria revelado ainda que possui um contato no aeroporto de Roma, membro da máfia e que o tem utilizado para fazer contrabando de jóias”, garante o informante. O informe nº 470 de 2 de dezembro destaca que os brasileiros Ricardo da Costa e Roberto da Cunha participaram de fabricação e distribuição de moeda falsa. Eles teriam se associado a um argentino chamado Ferreyro Pentado.

“Fábrica”
Boa parte das acusações dos agentes é claramente fruto de especulações, sem dados concretos. É o que ocorre, por exemplo, com a denúncia de que Clara Scharf, ex-mulher de Carlos Marighela, teria montado na Itália, “juntamente com outros latino-americanos, uma fábrica de documentos e passaportes falsos”. “No futuro, pretende falsificar também dólares americanos”, especula o agente no informe nº 353, de 4 de outubro, algo que nunca se comprovou. No informe de 23 de dezembro de 1968, por exemplo, o agente imagina que Maria Teresa Goulart “estaria em preparativos para montar uma ‘boutique’ no balneário de Punta del Este (Uruguai), com mercadorias trazidas de contrabando do Brasil e da Argentina”.

Muitas vezes, os brasileiros montavam, com a ajuda de estrangeiros, empresas ou organizações de fachada com a finalidade de escoar recursos financeiros ou permitir a realização de atividades políticas no exílio. Órgãos de pesquisa e agências de viagens eram os preferidos. O informe nº 664, de 14 de dezembro de 1972, relata que asilados e refugiados radicados no Chile “receberam do governo chileno, através do Banco del Estado do Chile, com cobertura da firma Ferreira & Cia — cujo presidente é o refugiado brasileiro José Ferreira Cardoso — o montante de 1 milhão de escudos”, correspondentes a US$ 3,3 mil.

Os principais alvos do serviço secreto do Itamaraty eram lideranças políticas consagradas no Brasil dos anos 1960. O governo militar temia que esses opositores exercessem influência sobre um conjunto da sociedade capaz de desestabilizar o regime. Até meados da década de 1970, o Brasil era uma ditadura entre governos democráticos, e essas pessoas gozavam de forte proteção dos países em que viviam o exílio. No arquivo do Centro de Informações do Exterior (Ciex) são centenas os registros das atividades de Leonel Brizola e seu cunhado João Goulart, Juscelino Kubitschek, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Neiva Moreira.

Dentre os militares considerados “perigosos”, o ex-almirante Cândido Aragão e o ex-coronel Jefferson Cardim Osório ganharam pilhas de informes em seu nome. Todos eles conseguiram escapar à execução policial. Muitos sobreviventes do regime, que se tornariam políticos de renome nacional décadas depois, eram então figuras secundárias no escopo da espionagem diplomática. Foi o que ocorreu com o atual governador de São Paulo, José Serra; o ex-ministro José Dirceu e o deputado Fernando Gabeira. Serra aparece em cinco informes. No nº 481/69, identificado como “líder estudantil”. Os agentes registram sua presença em Montevidéu, entre 14 e 16 de dezembro, procedente do Chile.

“Ele pretenderia prosseguir viagem a Cuba, via Praga, atendendo a convocação de outros líderes estudantis que se encontram em Havana”, para discutirem novas diretrizes do movimento estudantil no Brasil. No informe nº 283/71, Serra é classificado como “um dos mais ativos pombo-correio” da Frente Brasileira de Informações. O agente tem o número de seu passaporte, “expedido em Santiago do Chile pelo ex-cônsul Eduardo Guinle”. Em junho de 1973 sua presença é registrada em Córdoba (Argentina). Dirceu, por sua vez, está apenas em três informes. Seu nome consta do documento

nº 329/70 que trata da presença de “subversivos brasileiros em Cuba”. Dirceu é identificado na companhia de Wladimir Palmeira, Victor Papandreu, James Allen da Luz, Adelzito Bezerra, Cabo Anselmo, Aloísio Palhano e Tânia Rodrigues Fernandes. (CDS)


--------------------------------------------------------------------------------
Nos porões

O Correio publica desde o último domingo série de reportagens sobre como os diplomatas brasileiros perseguiram opositores da ditadura por meio de um sistema de inteligência, criado e operado pela cúpula do Ministério das Relações Exteriores. O Centro de Informações do Exterior (Ciex) funcionou de 1966 a 1985, e se baseava no Plano de Busca Externa, uma rede de cooperação entre agências de segurança de outros governos, antecipando em uma década a idéia da Operação Condor. O criador do Ciex foi o embaixador Manoel Pio Corrêa, que recebeu superpoderes do presidente Castello Branco para lançar cruzada de combate aos comunistas além das fronteiras do Brasil. Dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, descobriram-se 64 deles no arquivo secreto do Ciex.

Correio Brasiliense


25/07/07

Relatos de arapongas do Itamaraty revelam que militantes brasileiros de esquerda no exterior abriram empresas de fachada e tinham até ligações com a máfia italiana

Os seqüestros políticos e os atentados à bomba eram consideradas ações legítimas pelas lideranças contrárias ao regime militar brasileiro. Na lógica da guerra irregular, buscavam a libertação de prisioneiros ou a comoção social para desestabilizar a ditadura. Muitos asilados brasileiros, no entanto, foram além das ações políticas, enveredando pelo caminho da ilegalidade. Informes produzidos pelo Centro de Informações do Exterior (Ciex), do Itamaraty, mostram o envolvimento de opositores em atividades como contrabando de armas, falsificação de dinheiro e passaportes, e até a abertura de empresas e associações de fachada. Atividades que integraram a rotina da resistência.

O informe nº 470/69, por exemplo, acusa Manuel Soares Leães (Maneco), então piloto de João Goulart, de usar os aviões de propriedade do ex-presidente para “contrabando de armas brasileiras, inclusive metralhadoras INA”. No Uruguai, ele “as venderia a elementos da organização terrorista Tupamaros”. Os movimentos guerrilheiros latino-americanos também estariam juntos na negociação de dólares falsos. O informe nº 036/76 dá conta da apreensão em província do norte argentino de uma gráfica de dólares falsos. A maquinaria, segundo o documento, “teria sido usada no Chile durante o governo de Salvador Allende, tendo sido posteriormente transferida para a Argentina”.

No informe nº 283, de 5 de junho de 1972, um agente infiltrado diz que Joaquim Pires Cerveira confidenciou a ele que viajaria em breve para a Itália com o objetivo de buscar fundos a serem doados pelo Partido Comunista Italiano. “Cerveira teria revelado ainda que possui um contato no aeroporto de Roma, membro da máfia e que o tem utilizado para fazer contrabando de jóias”, garante o informante. O informe nº 470 de 2 de dezembro destaca que os brasileiros Ricardo da Costa e Roberto da Cunha participaram de fabricação e distribuição de moeda falsa. Eles teriam se associado a um argentino chamado Ferreyro Pentado.

“Fábrica”
Boa parte das acusações dos agentes é claramente fruto de especulações, sem dados concretos. É o que ocorre, por exemplo, com a denúncia de que Clara Scharf, ex-mulher de Carlos Marighela, teria montado na Itália, “juntamente com outros latino-americanos, uma fábrica de documentos e passaportes falsos”. “No futuro, pretende falsificar também dólares americanos”, especula o agente no informe nº 353, de 4 de outubro, algo que nunca se comprovou. No informe de 23 de dezembro de 1968, por exemplo, o agente imagina que Maria Teresa Goulart “estaria em preparativos para montar uma ‘boutique’ no balneário de Punta del Este (Uruguai), com mercadorias trazidas de contrabando do Brasil e da Argentina”.

Muitas vezes, os brasileiros montavam, com a ajuda de estrangeiros, empresas ou organizações de fachada com a finalidade de escoar recursos financeiros ou permitir a realização de atividades políticas no exílio. Órgãos de pesquisa e agências de viagens eram os preferidos. O informe nº 664, de 14 de dezembro de 1972, relata que asilados e refugiados radicados no Chile “receberam do governo chileno, através do Banco del Estado do Chile, com cobertura da firma Ferreira & Cia — cujo presidente é o refugiado brasileiro José Ferreira Cardoso — o montante de 1 milhão de escudos”, correspondentes a US$ 3,3 mil.

Os principais alvos do serviço secreto do Itamaraty eram lideranças políticas consagradas no Brasil dos anos 1960. O governo militar temia que esses opositores exercessem influência sobre um conjunto da sociedade capaz de desestabilizar o regime. Até meados da década de 1970, o Brasil era uma ditadura entre governos democráticos, e essas pessoas gozavam de forte proteção dos países em que viviam o exílio. No arquivo do Centro de Informações do Exterior (Ciex) são centenas os registros das atividades de Leonel Brizola e seu cunhado João Goulart, Juscelino Kubitschek, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Neiva Moreira.

Dentre os militares considerados “perigosos”, o ex-almirante Cândido Aragão e o ex-coronel Jefferson Cardim Osório ganharam pilhas de informes em seu nome. Todos eles conseguiram escapar à execução policial. Muitos sobreviventes do regime, que se tornariam políticos de renome nacional décadas depois, eram então figuras secundárias no escopo da espionagem diplomática. Foi o que ocorreu com o atual governador de São Paulo, José Serra; o ex-ministro José Dirceu e o deputado Fernando Gabeira. Serra aparece em cinco informes. No nº 481/69, identificado como “líder estudantil”. Os agentes registram sua presença em Montevidéu, entre 14 e 16 de dezembro, procedente do Chile.

“Ele pretenderia prosseguir viagem a Cuba, via Praga, atendendo a convocação de outros líderes estudantis que se encontram em Havana”, para discutirem novas diretrizes do movimento estudantil no Brasil. No informe nº 283/71, Serra é classificado como “um dos mais ativos pombo-correio” da Frente Brasileira de Informações. O agente tem o número de seu passaporte, “expedido em Santiago do Chile pelo ex-cônsul Eduardo Guinle”. Em junho de 1973 sua presença é registrada em Córdoba (Argentina). Dirceu, por sua vez, está apenas em três informes. Seu nome consta do documento

nº 329/70 que trata da presença de “subversivos brasileiros em Cuba”. Dirceu é identificado na companhia de Wladimir Palmeira, Victor Papandreu, James Allen da Luz, Adelzito Bezerra, Cabo Anselmo, Aloísio Palhano e Tânia Rodrigues Fernandes. (CDS)


——————————————————————————–
Nos porões

O Correio publica desde o último domingo série de reportagens sobre como os diplomatas brasileiros perseguiram opositores da ditadura por meio de um sistema de inteligência, criado e operado pela cúpula do Ministério das Relações Exteriores. O Centro de Informações do Exterior (Ciex) funcionou de 1966 a 1985, e se baseava no Plano de Busca Externa, uma rede de cooperação entre agências de segurança de outros governos, antecipando em uma década a idéia da Operação Condor. O criador do Ciex foi o embaixador Manoel Pio Corrêa, que recebeu superpoderes do presidente Castello Branco para lançar cruzada de combate aos comunistas além das fronteiras do Brasil. Dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, descobriram-se 64 deles no arquivo secreto do Ciex.

Correio Brasiliense