Raízes tortas do Brasil: estado familiar, cordialidade e escravidão

Imagem: David Rock Design por Pixabay

Por Carlos Michiles
20/05/2020

Continuando na guarda da quarentena, reassisti o filme “Getúlio”. Me impressionou uma de suas últimas frases, dita à sua filha Alzira, antes de dar o tiro derradeiro em seu peito que o fez sair da vida e entrar para a história: “Estou a tanto tempo no poder e nunca me pediram nada para o País. Sempre pediram para alguém. As coisas acabam como elas começam.”

E continuo, relacionando fatos conjunturais de hoje com a estrutura enraizada na formação do País.

Nesse momento de quarentena, a razão política parece também se recolher em quarentena. E entra em cena o velho carcomido, porém vívido, intimismo do poder. A parantela se revigora. Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. Como nas análises dos anos 30 com “Raízes do Brasil” (1936), escrito e reescrito diversas vezes até a morte de seu autor, Sérgio Buarque de Holanda.

Mas, antes, tivemos o clássico “Casa Grande & Senzala” (1933), de Gilberto Freyre que Darcy, com y disse que o Brasil ficou mais brasileiro depois dessa obra.

O governo atual que venceu as eleições de 2018, derrotando forças tradicionais do patrimonialismo estatal, despertou esperanças de boa parte da população com mudanças da velha política. Com pouco mais de um ano de governo, acabou se enroscando na velha visão afetiva dos que convivem próximos do círculo familiar, de amigos, parceiros e apaniguados que leva geralmente a violência e ao arbítrio ao ignorar as questões que são da esfera pública vê privada.

O desafio de governos democráticos é desmanchar esse modelo familiar e intimista na coisa do Estado e substituir essa anomia do personalismo que fundamenta as oligarquias pela racionalidade da vida pública que pode fundamentar melhor o jogo democrático.

A propósito dessas reiteradas crises anunciadas em sucessivos governos, cabe arriscar uma explicação mais ampla invocando pensadores que passaram pela angústia de entender esse país cheio de permanentes mal entendidos.
Como está em Raízes do Brasil, o Brasil parece mesmo como um grande mal entendido.

E continua até hoje. Entra governo, sai governo, vem impeachment, Lava Jato, mensalão, roda o salão e as crises reiteram e reforçam nosso abismo da injustiça e do subdesenvolvimento. Como se fosse uma maldição de sua própria formação histórica.

Diga-se que Raízes do Brasil buscou ajuda teórica para entender esse imbróglio brasileiro no clássico sociólogo alemão Max Weber que elaborou alguns conceitos que ganharam sentido nas mãos de Raízes do Brasil para tentar explicar o Brasil que já chamaram de um grande mal estendido, sem sair do seu destino de futuro.

O que está acontecendo com o que sempre aconteceu com o nosso país? Com uma bruta crise política, junto com uma crise de saúde pública que coloca a população em situação de isolamento para evitar o colapso da precária rede pública hospitalar.

Hospitais foram abandonados com o seu suporte estratégico do SUS. Em seu lugar, foram erguidos obras superfaturadas de estádios de futebol que, hoje, por ironia da maldição histórica, são transformados em hospitais de campanha.

Olhar para o que acontece em Manaus, minha cidade natal, é constatar uma tragédia que vem sendo anunciada, sempre.

O livro Raízes do Brasil, que foi escrito e reescrito pelo autor até o seu dia derradeiro, fazia mudanças de seu conteúdo para ir se ajustando à realidade política do Brasil, que muda ao gosto dos interesses pessoais das pessoas que deveriam representar as instituições da democracia de maneira racional e impessoal.

Mas não. Os que se elegem, escolhidos a dedo pelas oligarquias partidárias, tratam a coisa pública com a intimidade de seus interesses particulares, fazendo com que as leis não sejam nada para os amigos e tudo para os inimigos.

Existe no Brasil uma frouxidão das instituições por causa dessa moleza de caráter dos homens que assumem o poder político. Tudo é levado na malemolência dos amigos e parceiros íntimos. A República, essa coitada, continua fora de lugar.

Sérgio Buarque de Holanda chamou esse perfil de ‘homem cordial’. A gente age com essa moleza da razão. A cordialidade do brasileiro que abriga e acolhe, que abraça e beija. Uma característica que o autor da raiz passou até o fim da vida tentando explicar em trocas de opinião com o poeta Cassiano Ricardo, um confesso admirador do Estado Novo de Getúlio. Dizia que até o livro de Sérgio Buarque reconhecia a presença da cordialidade do brasileiro, um homem pacífico, sem violência. Um homem cordial.

O prefixo da palavra, contestava Sérgio Buarque, ‘cor’ significa coração e o brasileiro age com o coração. Mas um coração que tem dois lados: o intimismo das relações mas também a violência que vivenciamos diariamente na sociedade desde a escravidão.

Basta ver o tratamento que policiais orientados pelas leis criadas por quem exerce o poder nacional, estadual ou municipal, usam para prender, constranger e violentar senhoras, idosos ou jovens que querem apenas estar num parque ou numa calçada para caminhar. São tratadas com a violência brutal, com fome e desigualdade brutal de renda, longe da cordialidade unilateral e pacífica.

Mas como ironizava Cassiano Ricardo, respondendo a Sérgio Buarque, somos de uma cultura violenta, mas temos o costume de acabar nossas cartas cheias de divergências com as nossas “cordiais saudações”.

 

*Carlos Michiles é professor e escritor, com Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Manchester (Inglaterra), mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-graduações no México e no Japão, e autor do livro “Ética e a Miséria da Política” e fundador do PDT.