Leonardo Boff: ‘Ciro Gomes conhece profundamente o Brasil’


OM - Paula Bianchi / UOL Rio

Para o teólogo e professor Leonardo Boff, a atual crise política pode ser um momento de inflexão para o país, ajudando a amadurecê-lo democraticamente e a retomar o curso tanto de crescimento quanto da luta contra a desigualdade. Em entrevista para a jornalista Paula Bianchi, da UOL Rio, Boff afirmou:

“A crise é boa por nos fazer refletir. Queremos um Brasil justo ou apenas rico?”, questiona o expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Ele cita Ciro Gomes (PDT-CE) como alternativa à esquerda, lembra a gestão de Itamar Franco (1930-2011) e defende como melhor caminho a criação de um governo de união nacional, em que lideranças dos mais diversos setores se sentem para conversar em torno de um projeto comum.

 

UOL – Como o senhor vê a atual situação do governo?

 Leonardo Boff – Mais que o governo, a situação política e social atual está em uma profunda crise de identidade, de definição de que tipo de Brasil nós queremos. Há um choque de duas visões da democracia. Uma é a democracia neoliberal, que coloca o centro no desenvolvimento no enriquecimento privado, no capital, e não no bem comum. É o tipo de democracia representativa que vemos no mundo todo, que deixa sempre o pobre à margem. Faz políticas pobres para os pobres. A outra é a democracia republicana, que coloca o bem comum no centro. Ela se traduz por políticas sociais, investimentos grandes de inclusão dos marginalizados e um país com menos desigualdade. O primeiro cria um país rico, mas com profunda desigualdade. O outro visa a um país justo, com mais igualdade. Esses dois modelos estão em conflito, há uma luta de classe escondida. Aqueles que estavam sempre de fora, não ocupavam os lugares públicos no avião, na praça, nos mercados etc., agora estão ali. E aqueles que não estavam acostumados a isso se sentem constrangidos. Os querem no lugar deles, historicamente definido na periferia, na margem, a divisão clássica do Brasil de cima a baixo de volta.

Como fica a situação do governo frente ao processo de impeachment?

— O impeachment é um artigo da Constituição e tem que ser respeitado. Mas, para que haja o impeachment, tem que haver o crime. Grandes juristas, grandes nomes, pessoas sérias, que entendem seja da política, seja da economia, acham que não há a configuração de um crime que justifique o apelo a esse artigo da Constituição. O impeachment feito sem essas configurações configura um golpe. Derrubar o poder não mais pela via armada, mas pela via judiciária, por articulações antidemocráticas, de quem perdeu pelo voto e não aceita essa perda. Que não toleram que um trabalhador possa chegar ao Planalto, porque acham que a Presidência é um lugar natural dos que passaram pela universidade, da oligarquia. Lula pode estar no Planalto, desde que limpando o palácio, os banheiros, não como presidente. É intolerável para eles uma figura inteligente e carismática como ele. Já fui professor em vários lugares e frequento ambientes mais sofisticados intelectualmente e nunca na minha vida encontrei uma pessoa mais desperta, mais inteligente que o Lula.

 

Há uma perseguição contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?

— Isso está dentro da “estratégia imperial” denunciada por Noam Chomsky e comandada por países como os Estados Unidos de submeter todos ao macroimpério capitalista. Para isso, é importante a difamação de líderes carismáticos, fazer grandes manifestações usando grupos violentos e tornar ingovernável o país. O nosso problema é que há um vazio de liderança. Como disse o Barroso [ministro Luís Roberto Barroso, ao comentar a foto em que as lideranças do PMDB aparecem comemorando a saída do governo], ‘meu Deus, serão esses que vão governar’? Estamos num voo cego, não sabemos para onde vamos.

Mas a esquerda não teria um papel nisso?

— Os grupos mais conservadores que sempre estiveram no poder nunca se preocuparam em ter lideranças. Estavam preocupados em ter pessoas que ocupassem os espaços e os gerenciasse em funções dos seus privilégios. A esquerda também não se preocupou em criar líderes. Líderes não se criam, eles emergem dentro de uma crise. Com certeza essa crise vai fazer com que surjam figuras significativas. Acho pessoalmente que uma figura de grande relevância é Ciro Gomes (PDT-CE), que conhece profundamente o Brasil, tem um discurso ético, de uma política alternativa, e já se colocou como candidato. Problema que ele é homem, não se governa, mas se ele conseguir manter uma linha civilizada, ser o “Ciro paz e amor”, poderá ser um candidato forte.

O senhor citou Ciro como alternativa. Como fica a esquerda nessa crise?

— Toda crise acrisola, purifica. À medida que a crise se agrava aparece o núcleo essencial que precisa ser salvo e tudo o que é acessório, interesses particulares, caem. Neste caso a questão é salvar o estatuto da democracia. Necessariamente será uma democracia não mais só representativa — já que a representação no Congresso é uma das piores da nossa história e não reflete o Brasil –, mas participativa. Todas as grandes questões sociais serão discutidas, com auditorias, com grande participação dos movimentos sociais, das instituições nacionais, como OAB, CNBB, MST, entre outras. Daí nasce um projeto minimamente aceitável para todos que poderá ser levado avante e salvar o país na sua economia e na diminuição das injustiças.

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Boff na Caravana da Cidadania, com Lula

Podemos falar em um reagrupamento da esquerda?

— A crise poderá levar todas as forças políticas e sociais a sentarem em uma mesa sobre um projeto mínimo, que todos podem aceitar, na política do ganha-ganha e não do ganha-perde, e juntas estabelecerem um governo de salvação nacional. Mais ou menos como fez o Itamar Franco. Chamou notáveis e criou um projeto que encaminhou o Brasil para a estabilidade econômica. Acho que essa seria a saída mais civilizada, menos custosa, menos violenta. O terrível seria se a crise debandasse em uma espécie de guerrilha social, violência entre grupos, que é o mais que devemos evitar.

Como chegamos até a este ponto de conciliação nacional? O senhor lembrou Itamar, mas ele chegou à Presidência após a saída de Collor.

 

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Boff também apoiou e fez campanha para Dilma Rousseff

— Vejo duas saídas. Caso a presidente Dilma Rousseff veja que vai perder no Parlamento e sofrer o impeachment, ela mandar uma PEC (Projeto de Emenda à Constituição) convocando imediatamente ou dentro de 90 dias eleições gerais. Ela se afastaria do poder, acompanharia as eleições, e se faria o mesmo pacto. Outra forma, à medida que a crise se agrava — para mim, ela não chegou ao fundo do poço –, é as pessoas perceberem que ou se unem ou irão de encontro ao pior. Sentarem juntas e refletirem: “Olhem, o mais sensato que podemos fazer, até para salvar a nós mesmos, como banqueiros, empresários, investidores, movimentos sociais, líderes políticos etc., é buscarmos uma plataforma comum, ajustemos ao curso do mundo, que não tolera mais golpes de Estado, mais violência”. Mas essa seria a última tabua de salvação no auge da crise.

O governo tem feito uma série de alianças e tomado decisões que vão de encontro a muitas plataformas clássicas da esquerda. Caso a presidente se mantenha no cargo, o senhor vê o governo retomando estas plataformas?

— Nós temos um vício na nossa democracia que é o governo de coalizão. É um governo de negociação que descamba para a negociata. Para você buscar apoio no Parlamento, e sem ele não há como governar, é preciso fazer acertos com os partidos. “Eu o apoio desde que você me dê tal cargo, faça uma estrada na minha região”, e por aí vai. Isso tem que ser superado, caso contrário, continuaremos com as crises. Por isso acredito que uma nova eleição ou acerto comum que chamasse pessoas notáveis na política, no saber acadêmico, na experiência econômica, jurídica, para pensar além dos partidos, seria um caminho. A questão é que ninguém pensa no todo, cada um quer salvar seu partido, sua parte.

Acho que Dilma só terá chance se fizer uma guinada para a esquerda e fizer outras opções político-sociais, retomando novamente e alargando a inclusão social, que foi a nota característica do governo Lula-Dilma, criando um suporte partidário que sustente essa política. Mas aí será preciso contar muito com o apoio e com a visão ética dos políticos que pensam no Brasil, no melhor de todos, o que é difícil. Esse acerto será inevitável. Como estamos não há como continuar.

E como fica o Partido dos Trabalhadores frente ao atual momento político?

— O PT se cura se ele voltar às bases. Sou da opinião de que o PT não deve mais continuar no poder. Neste instante é importante porque ganhou as eleições, é um dado democrático. Os outros não aceitaram que ela [Dilma] ganhou porque se julgavam melhores. Tentam derrubar esse governo e tornar ingovernável, o que é absolutamente antidemocrático. O que se fez contra ela neste ano e meio é vergonhoso para qualquer um que tenha um pouco de senso de ética na política. Não aceitaram que perderam, e perderam. A democracia é assim. Espere a próxima vez. Eles se deram conta de que pela nova consciência que se criou no Brasil nunca vão chegar ao poder antigo pela eleição. O povo já sabe qual a lógica do capital, da macroeconomia, de exclusão, que só beneficia aquele grupo. No Brasil, 5.000 famílias controlam 46% do PIB. Eles que comandam porque a economia domina a política.

Estamos errados em muitos pontos. A crise é boa nesse sentido, nos faz refletir. Queremos um Brasil justo ou apenas rico? Para um Brasil apenas rico aplica-se o capitalismo violento e fica-se rico. Beneficia-se alguns, com grandes injustiças sociais e ecológicas. Ou um país justo que faz uma distribuição melhor, que inclui mais gente, que tem um ritmo mais lento, mas muito mais seguro, sustentável? Agora é um momento histórico de fazer essa opção e estamos maduros para isso.