A crise aérea e o superávit primário (II)

Por Gustavo Antônio Galvão dos Santos (*)
 
É difícil entender a racionalidade por detrás da estranha diferença entre a contabilidade pública e a contabilidade privada. Não há razão que explique porque um mesmo investimento é contabilizado como tal apenas se o número de identidade da empresa (CNPJ) é privado e como gasto corrente pelo simples fato do CNPJ ser público. Incompreensivelmente, isso acontece mesmo quando os investimentos são idênticos e rentáveis.
 
Essa diferença torna-se evidente pela importância dada ao conceito de Superávit Primário na contabilidade pública. A contabilidade privada desconsidera tal conceito. Superávit primário existe quando a receita menos a despesa operacional é maior do que os investimentos. As grandes empresas privadas estão quase sempre em déficit primário, segundo os critérios da contabilidade pública. Mas isso nunca é visto como um problema. Pelo contrário, significa que elas estão investindo, tomando financiamento e crescendo. O mesmo deveria ser interpretado com relação ao governo. A contabilidade deveria ser a mesma. Se o governo está investindo muito em infra-estrutura, deveria ser considerado uma iniciativa positiva. Mas no Brasil hoje não é. Só seria verdade se fosse adotada as normas da contabilidade privada. Na contabilidade pública “moderna”, investimento é equivocadamente considerado déficit.
 
Como diz o velho ditado, ‘jabuti não sobe em árvore, se ele está lá foi colocado por alguém’. Se a Eletrobrás constrói uma hidrelétrica, ela é contabilizada como gasto corrente, se a privada AES faz a mesma hidroelétrica é contabilizado como investimento. Por que a essa estranha diferença? Há quem desconfia que isso foi uma forma de justificar à força a privatização nos anos 90 e as PPP nesta década.
 
Sob uma perspectiva racional, os investimentos em infra-estrutura, como manutenção de pista de aeroportos, são freqüentemente fundamentais para evitar prejuízos fabulosos, ou seja, são investimentos inadiáveis. Por definição, investimentos inadiáveis sempre geram retornos econômicos e sociais muito superiores a seus custos. Portanto, são urgentes e viáveis.
 
No final dos anos 90, havia um desejo muito grande de privatizar tudo que fosse possível. Todavia, havia uma grande resistência da sociedade contra as privatizações. A solução encontrada para quebrar essa resistência foi dizer que o governo não teria recursos suficientes para realizar os investimentos em infra-estrutura. Inventou-se que o Estado brasileiro estava “falido”. Isso nunca foi verdade. De fato, jamais houve argumentos razoáveis para provar que o Estado estava “falido”. A relação dívida/PIB sempre esteve dentro de patamares razoáveis. Assim, no início da década, os defensores das privatizações irrestritas ficaram presos a argumentos preconceituosos, como acusar o Estado e seus órgãos de elefante branco, etc.
 
A partir de 1995, surgiu a oportunidade de levantar um argumento relativamente defensável. As taxas de juros inéditas impostas pelo Banco Central na gestão Gustavo Franco faziam com que a dívida pública em relação ao PIB se elevasse também a taxas inéditas. Encontraram aí o que queriam. Passaram a defender que os gastos e investimentos essenciais ou de cunho social do Estado deveriam ser reduzidos para compensar o aumento (“inevitável”) dos gastos com juros.
 
Investimentos essenciais em infra-estrutura que geram retorno para o governo em impostos e lucros não aumentam de fato o endividamento líquido, pois são ativos. Porém, foram colocados no mesmo bolo dos gastos correntes, para que fosse possível acusar o Estado de não ter capacidade para realizá-los. Esses investimentos supostamente aumentariam ainda mais a dívida pública líquida.
 
Entretanto, esse ainda era um argumento insuficiente para contingenciar muitos investimentos públicos, porque não havia um limite rígido para justificar que o governo não poderia realizar cada um dos investimentos essenciais que batiam-lhe à porta.
 
Em 1998 acharam a grande fórmula “mágica”: ‘a meta de superávit primário’. E ainda colocaram sobre o FMI a completa responsabilidade por sua imposição. A partir desse ponto poderiam barrar qualquer investimento, por mais fundamental ou rentável que ele fosse, pois todos os investimentos e gastos deveriam passar pela portinha estreita do superávit primário. Incluir mais um investimento, por mais urgente, rentável ou barato que fosse seria considerado um “atentado” à meta e, portanto, à própria “estabilidade”. Pronto. Estava aberto o caminho para lucros fabulosos projetados nas novas privatizações e os “tão esperados” PPPs. Estava aberto também o caminho para o apagão energético, a deterioração das estradas e da infra-estrutura em geral. Inclusive aeroportuária.
 
A irracionalidade da meta de superávit tornou-se evidente com o apagão. O governo FHC, para economizar poucos bilhões na construção de algumas hidroelétricas, desperdiçou dezenas ou centenas de bilhões de reais em redução do PIB, em arrecadação de impostos e em gastos adicionais decorrentes do racionamento, no ano de 2001 e anos seguintes. Se os investimentos públicos fossem contabilizados e tratados como investimentos ou se não houvesse uma meta tão rígida de superávit primário, isso jamais aconteceria.
 
Na "nova" contabilidade pública simplesmente inexiste a figura do investimento público. Ela, combinada com a meta de superávit primário, restringe quantitativamente o investimento governamental a seus menores valores possíveis. Levam assim a economia a diversos colapsos de infra-estrutura (apagões) desde o governo FHC.
 
Propagandeia-se por todas as direções que a meta é o auge da racionalidade moderna ditada pelos padrões internacionais. Triplo engano. A norma é irracional, retrógrada e completamente estranha aos padrões internacionais. A meta de superávit primário é uma invenção da equipe econômica do segundo mandato de FHC. Jamais foi cogitada ou mesmo imaginada em nenhum país desenvolvido. Os países desenvolvidos não a aceitam, pois percebem na como ela é: uma barreira à modernização da infra-estrutura e, portanto, do próprio país.
 
Por causa dela e dos últimos 20 anos de contingenciamento de investimentos públicos, São Paulo só tem 2 aeroportos, Cumbica só tem 2 pistas, não há metrô para Cumbica, o trânsito é engarrafado, todos querem viajar por Congonhas, que está super congestionada, e depois de anos de má conservação, teve a pista reformada de forma apressada e foi liberada sem o máximo de segurança para dias de chuva, porque a onda de os atrasos nos vôos levou as empresas a pressionarem por uma liberação rápida da pista. Resumindo: Superávit primário é atraso, irracionalidade e custa muitas vidas.
 
A meta de superávit primário é uma das três maiores restrições à adoção de uma política de desenvolvimento e de Pleno Emprego no Brasil. As outras são os juros estratosféricos e o câmbio valorizado. O país precisa sair do transe que a repetição diária de propaganda anti-Estado nos levou. Precisamos sair do transe e pensar racional e democraticamente no que devemos fazer para o bem de nosso povo.
 
(*) Gustavo Santos é Doutor em Economia IE-UFRJ
 

Por Gustavo Antônio Galvão dos Santos (*)

 

É difícil entender a racionalidade por detrás da estranha diferença entre a contabilidade pública e a contabilidade privada. Não há razão que explique porque um mesmo investimento é contabilizado como tal apenas se o número de identidade da empresa (CNPJ) é privado e como gasto corrente pelo simples fato do CNPJ ser público. Incompreensivelmente, isso acontece mesmo quando os investimentos são idênticos e rentáveis.

 

Essa diferença torna-se evidente pela importância dada ao conceito de Superávit Primário na contabilidade pública. A contabilidade privada desconsidera tal conceito. Superávit primário existe quando a receita menos a despesa operacional é maior do que os investimentos. As grandes empresas privadas estão quase sempre em déficit primário, segundo os critérios da contabilidade pública. Mas isso nunca é visto como um problema. Pelo contrário, significa que elas estão investindo, tomando financiamento e crescendo. O mesmo deveria ser interpretado com relação ao governo. A contabilidade deveria ser a mesma. Se o governo está investindo muito em infra-estrutura, deveria ser considerado uma iniciativa positiva. Mas no Brasil hoje não é. Só seria verdade se fosse adotada as normas da contabilidade privada. Na contabilidade pública “moderna”, investimento é equivocadamente considerado déficit.

 

Como diz o velho ditado, ‘jabuti não sobe em árvore, se ele está lá foi colocado por alguém’. Se a Eletrobrás constrói uma hidrelétrica, ela é contabilizada como gasto corrente, se a privada AES faz a mesma hidroelétrica é contabilizado como investimento. Por que a essa estranha diferença? Há quem desconfia que isso foi uma forma de justificar à força a privatização nos anos 90 e as PPP nesta década.

 

Sob uma perspectiva racional, os investimentos em infra-estrutura, como manutenção de pista de aeroportos, são freqüentemente fundamentais para evitar prejuízos fabulosos, ou seja, são investimentos inadiáveis. Por definição, investimentos inadiáveis sempre geram retornos econômicos e sociais muito superiores a seus custos. Portanto, são urgentes e viáveis.

 

No final dos anos 90, havia um desejo muito grande de privatizar tudo que fosse possível. Todavia, havia uma grande resistência da sociedade contra as privatizações. A solução encontrada para quebrar essa resistência foi dizer que o governo não teria recursos suficientes para realizar os investimentos em infra-estrutura. Inventou-se que o Estado brasileiro estava “falido”. Isso nunca foi verdade. De fato, jamais houve argumentos razoáveis para provar que o Estado estava “falido”. A relação dívida/PIB sempre esteve dentro de patamares razoáveis. Assim, no início da década, os defensores das privatizações irrestritas ficaram presos a argumentos preconceituosos, como acusar o Estado e seus órgãos de elefante branco, etc.

 

A partir de 1995, surgiu a oportunidade de levantar um argumento relativamente defensável. As taxas de juros inéditas impostas pelo Banco Central na gestão Gustavo Franco faziam com que a dívida pública em relação ao PIB se elevasse também a taxas inéditas. Encontraram aí o que queriam. Passaram a defender que os gastos e investimentos essenciais ou de cunho social do Estado deveriam ser reduzidos para compensar o aumento (“inevitável”) dos gastos com juros.

 

Investimentos essenciais em infra-estrutura que geram retorno para o governo em impostos e lucros não aumentam de fato o endividamento líquido, pois são ativos. Porém, foram colocados no mesmo bolo dos gastos correntes, para que fosse possível acusar o Estado de não ter capacidade para realizá-los. Esses investimentos supostamente aumentariam ainda mais a dívida pública líquida.

 

Entretanto, esse ainda era um argumento insuficiente para contingenciar muitos investimentos públicos, porque não havia um limite rígido para justificar que o governo não poderia realizar cada um dos investimentos essenciais que batiam-lhe à porta.

 

Em 1998 acharam a grande fórmula “mágica”: ‘a meta de superávit primário’. E ainda colocaram sobre o FMI a completa responsabilidade por sua imposição. A partir desse ponto poderiam barrar qualquer investimento, por mais fundamental ou rentável que ele fosse, pois todos os investimentos e gastos deveriam passar pela portinha estreita do superávit primário. Incluir mais um investimento, por mais urgente, rentável ou barato que fosse seria considerado um “atentado” à meta e, portanto, à própria “estabilidade”. Pronto. Estava aberto o caminho para lucros fabulosos projetados nas novas privatizações e os “tão esperados” PPPs. Estava aberto também o caminho para o apagão energético, a deterioração das estradas e da infra-estrutura em geral. Inclusive aeroportuária.

 

A irracionalidade da meta de superávit tornou-se evidente com o apagão. O governo FHC, para economizar poucos bilhões na construção de algumas hidroelétricas, desperdiçou dezenas ou centenas de bilhões de reais em redução do PIB, em arrecadação de impostos e em gastos adicionais decorrentes do racionamento, no ano de 2001 e anos seguintes. Se os investimentos públicos fossem contabilizados e tratados como investimentos ou se não houvesse uma meta tão rígida de superávit primário, isso jamais aconteceria.

 

Na “nova” contabilidade pública simplesmente inexiste a figura do investimento público. Ela, combinada com a meta de superávit primário, restringe quantitativamente o investimento governamental a seus menores valores possíveis. Levam assim a economia a diversos colapsos de infra-estrutura (apagões) desde o governo FHC.

 

Propagandeia-se por todas as direções que a meta é o auge da racionalidade moderna ditada pelos padrões internacionais. Triplo engano. A norma é irracional, retrógrada e completamente estranha aos padrões internacionais. A meta de superávit primário é uma invenção da equipe econômica do segundo mandato de FHC. Jamais foi cogitada ou mesmo imaginada em nenhum país desenvolvido. Os países desenvolvidos não a aceitam, pois percebem na como ela é: uma barreira à modernização da infra-estrutura e, portanto, do próprio país.

 

Por causa dela e dos últimos 20 anos de contingenciamento de investimentos públicos, São Paulo só tem 2 aeroportos, Cumbica só tem 2 pistas, não há metrô para Cumbica, o trânsito é engarrafado, todos querem viajar por Congonhas, que está super congestionada, e depois de anos de má conservação, teve a pista reformada de forma apressada e foi liberada sem o máximo de segurança para dias de chuva, porque a onda de os atrasos nos vôos levou as empresas a pressionarem por uma liberação rápida da pista. Resumindo: Superávit primário é atraso, irracionalidade e custa muitas vidas.

 

A meta de superávit primário é uma das três maiores restrições à adoção de uma política de desenvolvimento e de Pleno Emprego no Brasil. As outras são os juros estratosféricos e o câmbio valorizado. O país precisa sair do transe que a repetição diária de propaganda anti-Estado nos levou. Precisamos sair do transe e pensar racional e democraticamente no que devemos fazer para o bem de nosso povo.

 

(*) Gustavo Santos é Doutor em Economia IE-UFRJ