A condução e a recondução de Lula

Para o conduzido, a condução coercitiva é na verdade uma prisão por algumas horas. Ele não pode recusar o convite dos condutores, não pode pedir que o carro destes o deixe na próxima esquina; não pode, na polícia, desculpar-se com o delegado e dizer que volta mais tarde porque agora tem hora marcada com o dentista. Como oficialmente não é uma prisão, o conduzido tem a expectativa que será liberado no mesmo dia, depois do tempo, em geral demorado, para ouvir todas as perguntas e responder. Dependendo da idade e dos antecedentes do conduzido, ele pode achar a condução coercitiva  parecida com o que acontecia nos anos mais duros do regime militar, quando a tigrada do Doi-Codi (como a chamava um dos ministros não-beligerantes de três dos cinco presidentes militares, o professor Delfim Netto) praticava a condução coercitiva sem mandado judicial e sem a menor garantia de liberação. Nem sempre usavam algemas (proibidas no recente e rumoroso caso), mas quase sempre enfiavam um capuz de pano preto na cabeça do conduzido e o orientavam, com a pedagogia da época, a viajar deitado no banco de trás do fusca habitual (Puma foi só mais tarde, no Rio Centro), para não ser visto por algum transeúnte abelhudo. É para sua segurança, diziam. Para segurança dele próprio, Lula, que já provara as prisões da ditadura, provou agora a condução coercitiva da democracia e da legalidade constitucional. Se fosse intimado e caminhasse com as próprias pernas até a delegacia, correria o risco de ser envolvido em tumultos e pancadaria. Não se cogitou de qualquer alternativa, como ouvi-lo em casa. E a  ordem para que fosse conduzido, em vez de intimado, teve de adotar a cautela de proibir o uso de algemas, quando a suposição do comum dos mortais seria que, em casos assim, as algemas só fossem usadas quando expressamente autorizadas. O resultado, para quem esperava do depoimento o desmascaramento de Lula, foi o oposto. Ele saiu do interrogatório mais ou menos como Nelson Mandela deixou a prisão na África do Sul. E, além de recuperar a popularidade que possa ter perdido, deve ter ganho alguns pontos a mais. A condução coercitiva reconduziu Lula ao papel de candidato forte à Presidência. Mesmo nas pequenas decisões (caso desta, aparentemente), o juiz deve decidir de acordo com a lei e a própria consciência. Para não discutir os mistérios da consciência e o que Freud descobriu sobre os poderes do inconsciente, a lei comporta em geral mais de uma leitura, conforme a época,  as circunstâncias e outras variáveis. O mesmo texto da bicentenária Constituição dos Estados Unidos –  que diz serem todos iguais perante a lei – levou a Corte Suprema, no século 19, a legalizar a segregação racial, adotando a doutrina do “iguais, mas separados”; e no século 20, em 1954, a revogar a decisão anterior, ao declarar inconstitucional a segregação. No mesmo dia, o Ministro Marco Aurélio Melo considerou um erro a condução coercitiva de Lula: em sua leitura da lei, essa prerrogativa da Justiça só deve ser usada se e quando a pessoa intimada não comparecer ou recusar-se a comparecer, o que não era o caso. Lula, salvo engano, não foi intimado, foi surpreendido. E o  país está supreendido e apreensivo pelo que aconteceu horas depois, continua a acontecer e pode continuar acontecendo.  

Para o conduzido, a condução coercitiva é na verdade uma prisão por algumas horas. Ele não pode recusar o convite dos condutores, não pode pedir que o carro destes o deixe na próxima esquina; não pode, na polícia, desculpar-se com o delegado e dizer que volta mais tarde porque agora tem hora marcada com o dentista. Como oficialmente não é uma prisão, o conduzido tem a expectativa que será liberado no mesmo dia, depois do tempo, em geral demorado, para ouvir todas as perguntas e responder.

Dependendo da idade e dos antecedentes do conduzido, ele pode achar a condução coercitiva  parecida com o que acontecia nos anos mais duros do regime militar, quando a tigrada do Doi-Codi (como a chamava um dos ministros não-beligerantes de três dos cinco presidentes militares, o professor Delfim Netto) praticava a condução coercitiva sem mandado judicial e sem a menor garantia de liberação. Nem sempre usavam algemas (proibidas no recente e rumoroso caso), mas quase sempre enfiavam um capuz de pano preto na cabeça do conduzido e o orientavam, com a pedagogia da época, a viajar deitado no banco de trás do fusca habitual (Puma foi só mais tarde, no Rio Centro), para não ser visto por algum transeúnte abelhudo. É para sua segurança, diziam.

Para segurança dele próprio, Lula, que já provara as prisões da ditadura, provou agora a condução coercitiva da democracia e da legalidade constitucional. Se fosse intimado e caminhasse com as próprias pernas até a delegacia, correria o risco de ser envolvido em tumultos e pancadaria. Não se cogitou de qualquer alternativa, como ouvi-lo em casa. E a  ordem para que fosse conduzido, em vez de intimado, teve de adotar a cautela de proibir o uso de algemas, quando a suposição do comum dos mortais seria que, em casos assim, as algemas só fossem usadas quando expressamente autorizadas.

O resultado, para quem esperava do depoimento o desmascaramento de Lula, foi o oposto. Ele saiu do interrogatório mais ou menos como Nelson Mandela deixou a prisão na África do Sul. E, além de recuperar a popularidade que possa ter perdido, deve ter ganho alguns pontos a mais. A condução coercitiva reconduziu Lula ao papel de candidato forte à Presidência.

Mesmo nas pequenas decisões (caso desta, aparentemente), o juiz deve decidir de acordo com a lei e a própria consciência. Para não discutir os mistérios da consciência e o que Freud descobriu sobre os poderes do inconsciente, a lei comporta em geral mais de uma leitura, conforme a época,  as circunstâncias e outras variáveis. O mesmo texto da bicentenária Constituição dos Estados Unidos –  que diz serem todos iguais perante a lei – levou a Corte Suprema, no século 19, a legalizar a segregação racial, adotando a doutrina do “iguais, mas separados”; e no século 20, em 1954, a revogar a decisão anterior, ao declarar inconstitucional a segregação.

No mesmo dia, o Ministro Marco Aurélio Melo considerou um erro a condução coercitiva de Lula: em sua leitura da lei, essa prerrogativa da Justiça só deve ser usada se e quando a pessoa intimada não comparecer ou recusar-se a comparecer, o que não era o caso.

Lula, salvo engano, não foi intimado, foi surpreendido.

E o  país está supreendido e apreensivo pelo que aconteceu horas depois, continua a acontecer e pode continuar acontecendo.